Beyonders 3: Kate, Samuel e Jota
Após a aula, três amigos caminham juntos, mas ao chegarem em casa, um evento inesperado transforma completamente o dia.
Samuel teve uma sensação estranha de tudo aquilo estar se repetindo, enquanto caminhava ao lado de Jota. Um déjà vu repentino, que fazia parecer tudo em câmera lenta. Foi tirado do transe pelo amigo.
– E aí Sam? Vamos ou não? Tô com fome de sanduíche.
– Sei lá, Jota, bateu um desânimo, acho que vou pra casa.
– Bem a tua cara. Sempre dando pra trás.
– E aí, vocês vão fazer o que agora? - Kate chegou furtiva e parou imóvel do lado de Sam, segurando cadernos com os braços enquanto olhava para os dois com um meio sorriso divertido.
– Se depender do Sam, ver a vida passar contemplativamente – disse Jota.
– Deixa de ser rabugento Jota – falou Kate. – E aí Sam, 'bora comer alguma coisa? Queria trocar umas ideias de Semiótica contigo antes de a gente começar o trabalho.
– Caraca, vocês acabaram de sair da aula. Mudem a chavezinha no cérebro.
– O Jota é assim mesmo Kate, interesse localizado, não dura mais do que o espaço da sala de aula.
– Nem, não dura nem no espaço da sala de aula. Pronto, fui, se quiserem me sigam.
– Ok pentelho. Mas antes vamos dar uma passada rápida lá em casa, quero pegar meu mac.
– Beleza, Apple boy - disse Jota, com uma risada.
– Ah cara, nem vou entrar de novo nesse debate. Macs são melhores. Ponto.
– Não, meu lápis e papel são melhores.
– Meninos, não briguem. Não tem problema ser um garotinho Apple, Sam. Só não comece a usar jeans e camisa preta todos os dias, e você vai ficar bem.
Sam emburrou enquanto os amigos riam, em meio a pedidos insinceros de desculpas. Ele morava do lado da Universidade. Uns 15 minutos a pé do centro de Ciências Sociais da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.
Comunicação Social era um curso recente, e o único que despertou o interesse de Sam e Jota, devido ao gosto por arte, desenho gráfico e afins: queriam trabalhar com criação e aquele parecia o caminho mais óbvio. Pra alegria de Sam, Kate - que estudou com ele o colegial inteiro, também optou como segunda opção pelo curso. Psicologia havia sido a primeira opção, mas ela estranhamente não passou.
– Vocês dois não acham que a única disciplina que valeu até agora foi essa?
– Essa qual?
– Semiótica, Jota. Ah, desculpe, você estava na Jotalândia durante as duas horas que a professora apresentou aquela fascinante visão de mundo.
– Nanã dona Kate, pela primeira vez uma aula me interessou de verdade. Mas, sei lá, eu tô meio perdido ainda com tudo isso de faculdade.
Kate suspirou e olhou com um misto de graça e indignação para Jota.
– Pois é, a gente acha que vai entrar em um curso e tudo vai se encaixar, a vida vai tomar rumo, e no final das contas só ganha mais dúvidas e perguntas – disse Sam, contemplativo.
– Ah, vocês dois se merecem mesmo. Faculdade não define a vida Sam, ela só te dá os meios para você definir. Você tem que saber pra onde vai. Senão vai viver assim, frustrado.
– Acho que você devia ter feito filosofia Sam, é a tua cara – disse Jota, sarcasticamente.
– Ah, cala essa boca sua criatura insuportável. Sério, como você aguenta o Jota, Sam?
– Ah, meu nível de tolerância à Jotanol é alto - falou sorrindo de lado pra Kate, enquanto a lembrança de outros tempos foi se formando na sua cabeça...
Sam nunca tinha tido um amigo de verdade até conhecer Roberto J. W., naquele fascinante mundo dos 9 anos de idade. O amigo tinha crise com o primeiro nome e se apresentava somente como J.W., daí pra começar a ser chamado de "Jota" foi algo natural. Ninguém, além de Sam, sabia o que queria dizer os dois sobrenomes de Roberto.
Naquela época Sam era escolhido para cristo intermitentemente.
As crianças podem ser particularmente maldosas. Quando Jota se mudou com os irmãos e os pais para o prédio onde Sam morava, encontrou o futuro amigo sendo moralmente sacaneado pelos atuais colegas. Depois de alguns dias assistindo aquelas cenas de humilhação Jota chegou ao limite: não aguentou mais e saiu pra cima de Vini, um dos membros da turma, no instante em que ele havia acabado de dar uns tapas em Sam. Vini foi pego de surpresa por Jota, apanhando escadaria abaixo do prédio onde moravam. Foi memorável. Mas como amizades de infância são imprevisíveis, esse evento fez todos se aproximarem e se tornarem realmente amigos, embora ainda relembrem, entre risadas e um certo constrangimento.
Só que Sam e Jota se tornaram inseparáveis desde então.
– Acho que vou tentar Psicologia de novo, Sam.
Sam foi pego de surpresa em meio ao seu devaneio. Já estavam chegando a frente ao seu prédio.
– Como assim, Kate? Vai desistir agora, que a coisa tá começando a esquentar?
– Está mesmo? - disse Kate com um olhar sacana, enquanto Sam ruborizava e arregalava os olhos.
Jota sorriu marotamente.
– Falando sério, por mais fascinante que a publicidade possa ser, acho que vou ser mais útil para a humanidade se puder ajudar as pessoas a se entenderem melhor.
Katarina Alessandra era uma capricorniana pé no chão e os olhos azuis atentos no potencial humano. Nascida no interior, ela basicamente teve contato com a civilização da cidade grande só aos 11 anos. Até então cresceu vivendo meio isolada, o que ajudou no seu jeito contemplativo e racional com uma pitada sonhadora de ver o mundo. Sam era o seu oposto. Meio desatento, mas brilhante e extrovertido quando algo lhe interessava. Era um dos caras mais gente-boa que ela havia conhecido, embora sua capacidade de auto anular-se fosse gigantesca, o que a incomodava e fascinava ao mesmo tempo.
– Mas, assim, você vai fazer Psicologia aqui na UFSC ou em outra facul?
– Hummmmm, tem alguém com medo de perder alguém.
– Quieto Jota. Vou tentar aqui claro, mas também em outras. O que rolar, rolou.
Sam tremeu ante a possibilidade de não ver Kate todos os dias, embora nunca soubesse que poderia tremer ante essa possibilidade. Mas se limitou a dizer:
– Ah, beleza.
– Aí, chegamos - disse Jota. – Corre lá que a gente espera aqui cara.
– Ah, eu vou subir junto, quero ir ao banheiro. Falou Kate apertando as pernas.
– Hum, então eu vou também, roubar uns gibis.
– Não vai tocar em nada. Você ainda não devolveu toda a coleção de Akira que levou faz duas semanas.
– Ah, eu vou sim.
Entraram discutindo no elevador, enquanto Kate apertou apreensiva o botão, dando pulinhos para dentro em uma tentativa de fazer a vontade passar. Um senhor barbudo, com cara oriental olhou de canto para eles. Sam e Jota discutiam ardentemente qual dos dois seria Tetsuo e qual seria Kaneda caso um dia fizessem um filme de Akira.
– E aí Kate, o que cê acha?
– Eu acho que vou mijar nas calças se esse elevador não chegar logo. - O senhor oriental olhou com curiosidade para a garota. - Ops, desculpe tio.
– Chegamos. Corre Kate, senão pinga.
– Ah, cala essa boca Jota.
Kate saiu rápido e Sam foi do lado pra abrir a porta. Ela entrou e sumiu lá dentro berrando:
– Dona Inês, garota indo pro banheiro, bom diaaa!
– A dona Inês não tá em casa Kate, relaxa. - Sam se referia à mãe pelo sobrenome quando estava com os amigos, assim como eles faziam, e como "mãe" quando estava sozinho.
– Jota, nada de quadrinhos, volta aqui Ah, oi Bichano. - o gato de Sam arrastou-se em suas pernas, carinhoso e com fome. Sempre com fome. – Já vou te dar comida.
Fechou a porta e guardou mecanicamente as chaves no bolso. Mochila na cadeira, notebook na mesa, banheiro e cozinha, pra tomar um suco. Andou até o quarto e viu Jota remexendo no armário de HQs enquanto berrava lá de dentro que já estava quase acabando de escolher.
Sentou no momento em que havia acabado dar um gole no suco. Aquela poltrona era boa para relaxar, pensou pela primeira vez. Kate devia ter emendado um número dois, pelo jeito que estava demorando. Riu sozinho.
Bichano pulou no colo, tirando-o do transe meditativo. Adorava gatos, odiava os pêlos. "Sai fora Bichano" - Colocou com calma o felino no chão, uma, duas, três, vezes, até que ele ficasse por lá. Gatos são criaturas difíceis.
Foi exatamente quando Sam conseguiu aquietar um pouco mais sua mente, sentado naquela poltrona, que o fenômeno aconteceu pela primeira vez.
Na pequena e quadrada sala de visitas, acima da mesa de jantar, havia um quadro com uma pintura belíssima de Huángshān Shi, também conhecida como The yellow mount, no leste da China. Tinha esse nome pelo cenário, famoso pelos pôr de sóis.
A paisagem era peculiar: picos de granito com mais de mil metros de altura, que lembravam árvores flutuando sobre um "mar de nuvens" enchendo os olhos.
Retratava um fim de tarde, tinha tonalidades amarelo- avermelhadas, que contrastavam com a paisagem verde-escura das montanhas. Trazia paz e tranquilidade para o ambiente. Sam pensou se tinha vontade de conhecer o lugar. Mas havia uma sensação estranha, como aquela que temos quando já conhecemos muito um lugar e queremos ir para novos horizontes.
Sacou seu celular do bolso e enquadrou a obra na pequena tela. Registrou a foto pra postar depois, com algum efeito bacana, pelo Instagran. Guardou o telefone no bolso esquerdo de seu jeans – era a segunda semana sem lavá-lo. Pensou no porque se lava camisas com mais frequência do que calças. Sentou-se novamente e voltou a olhar para o quadro, procurando notar algo além do usual.
Ele estava determinado a aprender a ver o mundo "sob a ótica dos signos" como a professora havia explicado mais cedo, na aula de Semiótica daquela manhã. De repente, um ímpeto de reflexão mais profunda surgiu. Talvez pela primeira vez ele pensou no seu próprio jeito de ser.
Enquanto olhava de lado, vendo Jota fuçar sua coleção de HQs em busca de algum exemplar ainda não lido, se pegou pensando que já não tinha mais aquele interesse todo em histórias em quadrinhos. Mas continuava colecionando seletivamente, mais para ter assunto com Jota e outros poucos colegas, o que aí sim era algo que ele realmente dava valor. Enfim, era difícil mudar velhos hábitos.
Pensou tudo isso com uma tranqüilidade anormal. Também gostava de um bom livro, um bom argumento, mas lhe faltava muitas vezes a paciência necessária para percorrer com mais calma cada linha da leitura. Embora fosse fácil apreender o sentido, perdia os detalhes, inclusive de textos estéticos, como quadros, pinturas.
Desconfiava que tinha alguma coisa a ver com déficit de atenção ou algo assim, mas não pensava muito a respeito.
Fazia pouco tempo aprendera a respirar fundo e esperar os outros acabarem de falar, embora nem sempre resistisse a se atravessar em uma conversa. Já havia conseguido ficar mais de hora sem bater os pés no chão ou brincar com as mãos e conseguia, com certo esforço, não se entediar em uma palestra, curso ou sala de aula. Agora seus devaneios em sala não eram mais tão frequentes.
Embora sempre fosse fácil esquecer detalhes, sua mente costumava guardar pormenores de assuntos e culturas não tão úteis, como por exemplo, o diálogo completo do filme Back to the Future e outras pérolas nerd. Seu senso de prioridade ainda não havia amadurecido, mas ele se esforçava.
Mas talvez fosse o fato de ter esvaziado sua mente por alguns segundos que permitiu sua cognição ser preenchida por outro conteúdo, contido no quadro à sua frente.
Fixou os olhos em um ponto específico e relaxou. Vários pensamentos aleatórios cruzaram sua cabeça e alguns sentimentos ainda sem descrição pulsavam e desapareciam em um ritmo encadeado. Toda vez que divagava procurava voltar a olhar o quadro e imagens de uma China que não conhecia tomaram conta de sua mente. Não sabia precisar por quanto tempo estava já sentado ali, olhando.
Foi quanto a paisagem pareceu se aproximar de seus olhos, como em um zoom, porém de forma muito sutil. Era mais como se ele estivesse movendo-se em direção a ela. O vermelho do pôr-do-sol tornou-se mais intenso e ele começou a sentir o vento batendo no rosto.
Vento? Era um quadro, ou uma janela? Estava divagando novamente. Então cheiros diferentes, barulhos de animais desconhecidos, grilos, isso, não, cigarras, não sabia dizer. A sensação era de estar crescendo, inflando, saindo de si. Um som alto percorreu sua cabeça, como se ouvisse uma britadeira do lado da orelha e então, súbito, sensação de leveza, agradável.
Flash Clarão branco. Silêncio total. Ausência de sentidos, de espaço e de si. De repente, todos os sentidos de uma vez só, voltaram novamente.
A primeira constatação nem sempre é a mais inteligente. De qualquer modo, constatou: não estava mais na sala de casa.
Sentiu de repente a grama sob seus pés e olhando para baixo deparou-se com a visão de milhares de metros abaixo, entre ele e a floresta que se estendia à frente. Alguém segurou-o pelo ombro e o puxou para trás. Deu alguns passos atrapalhados e caiu no chão. À sua frente, a paisagem que estava mirando a alguns segundos no quadro da sala, estendia a se perder de vista. Sentiu-se desorientado. Olhou em volta e não acreditou no que viu: estava sentado no topo de uma montanha, presente naquele local, vivo, materializado.
De repente se deu conta que uma figura calma e tranquila o observava como se estivesse esperando durante muito, muito tempo.