Beyonders 5: Transição
Kate e Jota procuram por Sam. Em outro tempo e espaço, Samuel tenta manter a lucidez. Beyonders | Capítulo 5
– Jota, cadê o Sam?
– Hã?
Jota estava absorto lendo atentamente um exemplar da Graphic Novel BUDA, de Osama Tesuka. Kate o tirou do transe.
– Foi pra cozinha, deve estar na sala, sei lá - e voltou aos quadrinhos.
– Jota, eu já procurei na casa inteira, ele não falou nada se ia em algum lugar? Tô esperando sentada no sofá com o bichano faz uns 20 minutos pô Já são quase duas da tarde.
– Não falou não. Liga pro cel dele.
– Já liguei, dá fora de área. Peraí, vou ali embaixo ver se ele não foi pegar algo no carro, falar com o porteiro, comprar rapadura, sei lá.
– Vou contigo.
Jota catou o exemplar de Buda e colocou na mochila, diante do olhar censurador de Kate.
– Ah, nem vem, eu vou devolver amanhã.
– Sei. Anda logo.
Passaram pelo bichano, sentado em cima da mesa observando atentamente os dois, como se soubesse de algo. Kate fez um carinho no gato, que começou a ronronar.
– Aposto que você sabe onde ele foi parar, não é gato safado?
- Bichano piscou os olhos, devagar e arrastou a lateral da boca na mão de garota. Ao chegar na porta, Kate congelou.
– Que foi, parou por quê?
– A chave Jota.
– Que é que tem a chave?
– O Sam deve ter levado, não está na porta.
Sam ainda estava desorientado. Sentia-se como se tivesse acordado no meio da madrugada, de súbito. Tontura, desorientação e uma vontade intensa de dormir tomavam conta de seu corpo. "Dormir", pensou. "Deve ser um sonho. Cochilei no sofá. Um sonho lúcido?"
Lembrou-se de uma conversa com um amigo sobre uma reportagem de sonhos lúcidos, onde sabemos estar sonhando e podemos controlar nossos sonhos. O senhor à sua frente o tirou desse quase-transe.
— A primeira vez é assim mesmo. Sua consciência está se adaptando a uma nova percepção de mundo. Uma nova... representação.
Uma sensação de segurança familiar o envolveu. Não era um sonho, embora ele estivesse lúcido. Na verdade, mais lúcido que o normal. Talvez fosse efeito dos hormônios, diante de um suposto perigo desconhecido, acelerando seus batimentos cardíacos e ampliando seus sentidos. Uma onda de ansiedade o deixava pronto para a defesa. Medo, confusão e insegurança persistiram por um tempo. Mas agora tudo se acalmava. Nunca havia se sentido assim. Isso era real. Só podia ser um sonho, mas não era. Ele estava diante da paisagem que, segundos — ou minutos — atrás estava pendurada na parede de sua sala. Sua sala. Onde estava sua sala? Onde ele estava? Na China? Como assim?
— Respire fundo, fixe um ponto. Acalme-se — disse a voz cansada em uma língua estranha. Chinês? Ele ouvia sons estranhos, mas que faziam sentido na sua cabeça. Não era a língua, mas o significado da linguagem que estava sendo entendido.
A paisagem em volta estava banhada pelo sol da tarde. Luz amarela, daquelas nostálgicas, que acalmam e convidam à reflexão. "Mas era quase meio-dia quando...". Então Sam resolveu falar e, quando falou, o português havia desaparecido. Era como se ele sempre houvesse falado chinês.
— Onde estamos? — Se assustou com o próprio som das palavras em mandarim.
— Onde você quis estar — respondeu o chinês.
— Eu, eu... não faço ideia...
— Você precisa viajar mais. — O idoso sorriu diante do próprio trocadilho e continuou: — Você está em um dos picos Huángshān Shi, o que os americanos chamam de Lótus Peak. Mas claro, você não é americano.
— Sou sim, latino, da América do Sul, Brasil.
O chinês fez uma cara estranha.
— Brasil, Pelé, futebol, péssima educação e corrupção endêmica?
O mandarim refletiu e sorriu.
— Claro, é perfeitamente aceitável.
Por um momento, Sam pensou em como os chineses podiam ser obtusos com outras culturas, mas estranhou, já que atualmente a China estava presente em todos os lugares, incluindo os tênis que calçava. Então, lembrou do sonho que teve mais cedo, sobre Kate sendo perseguida. Seu coração disparou.
— Estou sonhando?
— Sam, você nunca esteve tão acordado.
— Eu quero voltar para casa — disse sem muita convicção, mas de repente o rosto de Kate veio à sua mente e ele repetiu: — Eu preciso voltar. Como eu cheguei aqui?
— Você quebrou as regras e transportou, digamos, seu eu para este local, neste momento.
Sam permaneceu atordoado, em silêncio. Não aceitava, nem entendia o que estava acontecendo.
— Sam, pense. Aconteceu algo diferente com você hoje? Ou tem acontecido ultimamente?
— Não que eu me lembre.
— Tem certeza? Pense. Reflita. O que tem acontecido diferente do que vem acontecendo com você nos últimos anos? Qual padrão de pensamento se quebrou?
Imediatamente, Sam lembrou-se das aulas da professora Gina. "Quebra de paradigmas", lembrou. "Novas formas de pensar. Semiótica". E falou:
— Bem, eu tenho tido essas aulas...
— Ah — disse o chinês. — Aulas, ambientes intensos em conhecimento compartilhado. Tão necessárias e tão menosprezadas, em tantas épocas...
Sam lembrou novamente das aulas e de como era familiar a sensação de começar a ver o mundo de forma diferente. Quase um sonho, mas onde você está consciente de que sonha.
— Então, essas aulas me fizeram pensar sobre o mundo como não tinha pensado antes. Aliás, não tinha pensado em como tenho pensado diferente ultimamente...
— Diferente como?
— É como... eu sei que há algo mais, mas não consigo alcançar o que é...
— Por que não consegue encontrar a linguagem adequada para explicar?
— Isso, não encontro a imagem, a figura, a explicação na minha cabeça, mas entendo o que é. E as aulas da Gina, sobre signos, paradigmas e tudo mais, me ajudaram a entender melhor que...
— Que mudar a forma de olhar é mudar o que se olha?
— Isso, ou algo assim.
— Sam — começou o chinês. — O que tem caráter de lei não pode ser quebrado facilmente. Há uma visão limitada de mundo. E é bom que seja assim, pois o efeito da aprendizagem é mais intenso. Mas há formas de se pular etapas e quebrar as regras. Afinal, elas estão ali na medida em que você as aceita.
— Regras, que regras?
— Regras que, por exemplo, não permitem que você pule de lá para cá. Ou daqui para mais adiante. Há um passo após o outro, paredes, leis universais determinadas, mas não determinantes. É preciso que seja assim. Mas a regra é determinada para quem precisa.
— Quem precisa?
— A lei que pune o roubo existe porque há ladrões. Uma vez não havendo ladrões, não há necessidade de uma lei. Você entende?
— Tem a ver com livre arbítrio?
— Lei antiga. Ação e reação. Entenda a reação e você determinará uma melhor forma de agir. Aja da melhor forma sempre e a lei não mais se aplica, se torna desnecessária, pois o que sobra é apenas...
— Apenas o que é... — lembrou: — Primeiridade.
— Humm — o mandarim parou alguns segundos, como se tentasse lembrar de algo. — Potencial, ausência de leis determinadas. É, pode ser. O que aconteceu com você é resultado de ter acessado a informação em sua essência. Tudo o que pode ser percebido pela mente que deu o primeiro passo além das percepções ordinárias.
— Por uma mente? Estou tendo dificuldades de acompanhar aqui.
— Sim, como a sua, que entendeu algo além das palavras por alguns segundos e se conectou com algo tão natural quanto ser você mesmo.
— Algo natural? O que se conectou?
— O seu passado, Samuel.
(Continua…)