Sam começou a correr e se escondeu atrás de uma pedra, a aproximadamente 30 metros de onde estavam. Sentou-se apavorado no chão enquanto tentava abrir o aplicativo de fotos no celular.
— Ah, droga, maldito firmware, está todo travado, anda logo.
Ele se virou apavorado para olhar o chinês — eu nem sei o seu nome — pensou. Mas ele já havia desaparecido. Um bando de homens vestidos como guerreiros que lembrava um filme de Kurosawa procuravam alucinados por algo que já não estava mais lá. Ele se escondeu novamente.
— Ah, droga. Isso — falou alto — Ah, não. Tarde demais.
Os guerreiros berraram "Ali" apontando na direção da pedra onde Sam estava, no instante em que ele fitava a foto do quadro na sua sala.
— Anda, anda logo — suava frio, apertou os olhos fortemente enquanto mirava a foto. — Pensar em algo, mas o quê?
Quase instantaneamente, a imagem de Kate veio à sua mente. O sorriso dela na sala de aula no momento em que trocaram olhares para fazer o trabalho juntos e mais milhares de vezes que havia visto aquele sorriso. Enquanto a imagem dela correndo para dentro da sua casa apertada para ir ao banheiro gerou um sorriso espontâneo, sentiu a mesma sensação de quando olhava para o quadro. As vozes dos guerreiros foram ficando distantes e, de repente, sentiu algo roçar em seu braço e afundou as costas no sofá.
Samuel abriu os olhos vagarosamente, acariciando o sofá com uma mão e o gato com a outra.
— Oi bichano. Estava me esperando? — O gato miou alto, nitidamente excitado, e pulou em direção ao pote de ração.
Ele estava exatamente na mesma posição de quando fez sua primeira transição pelo quadro, minutos antes. Ou foram horas? Quanto tempo havia passado? Parecia que tinha cochilado por alguns momentos. Era como se, de repente, Kate fosse sair do banheiro e Jota aparecesse com algumas HQs na mão. Samuel acreditaria que tudo não passara de mais um de seus fortes devaneios, não fosse pelo sol a caminho de se pôr e o cheiro inconfundível do perfume de Kate no local onde estava sentado. “Floratta”, suspirou.
“Kate”. — Meu Deus, Kate! Onde... — As almofadas estavam amassadas, e Samuel percebeu claramente que Kate havia esperado por ele ali. Por quanto tempo? Então, ele notou um pedaço de papel rabiscado.
Levantou-se, atordoado, sem saber o que pensar. No automático, foi servir ração para o gato. Olhou para o sofá, agora encardido de barro e suor.
— Minha mãe vai me matar.
Sam se pegou olhando o pôr-do-sol da janela da sala, segurando o bilhete escrito à mão com a caligrafia inconfundível de Kate: “Onde você foi? Liga assim que puder. Tô pê com você. Estamos preocupados, K.”
Ele não ligou. Não teve coragem. Não sabia o que ia falar. Estava com a cabeça como se acabasse de ter acordado de um sonho, bem nítido, mas com vários detalhes se perdendo. A única coisa que o fazia confirmar que não havia sonhado era o sofá imundo, suas roupas idem, o saco com os objetos em um canto e o fato de Kate ter deixado o bilhete na mesinha do sofá.
Dona Inês tinha xingado o filho até a alma enquanto ele limpava seus rastros de sujeira sob pedidos não muito convincentes de desculpas, explicando que havia jogado futebol com Jota depois da faculdade. Ele odiava futebol.
Atordoado, foi se deitar, tentar dormir, organizar a cabeça, pensar sobre tudo aquilo. Naquela noite não leu nenhum livro, nem folheou nenhuma revista.
Sabe-se lá onde ele poderia ir parar.
1h AM.
O celular vibrou na cabeceira da cama. Sam acordou devagar, de um sonho sobre uma conversa estranha em uma sala e um quadro pintado à luz de velas. Pegou seu celular desajeitadamente, passando o dedo na tela para atender, ainda de olhos fechados.
— É a décima vez que eu ligo hoje. ONDE DIABOS você se meteu e por que não atende a MERDA do telefone??
Aquela voz irritada era inconfundível: Kate. Ele afastou o celular e verificou no indicador 8 chamadas não atendidas.
— Foram oito vezes, Kate — falou meio dormindo.
— Que diferença faz, seu imbecil. Eu estava morrendo de preocupação. Até o Jota saiu do mundo de maravilhas dele e me ligou dizendo que não havia conseguido falar com você.
— Kate, calma, aconteceu... algo, eu preciso explicar, mas não vai dar pra ser por telefone. Eu vou te pedir mil desculpas de joelhos e ainda te comprar um chocolate, mas a gente precisa falar pessoalmente.
Não ouvira celular e nem telefone durante todo o dia. Tinha caído em um sono tão profundo, que deveria ter passado batido. Ela continuou falando do outro lado do telefone.
— Ok, dane-se, eu só queria saber se você estava bem. Seja lá onde você tenha se metido, é só mais um furo na lista interminável de furos que você tem.
— Kate, desculpe, eu te explico tudo amanhã, quer dizer, hoje, depois, na facul.
— Ok, Sam. Boa noite. — e desligou, visivelmente irritada.
Ele pegou o telefone e discou outro número, com a ansiedade à flor da pele.
— Jota, tá dormindo?
— Agora não mais. Onde você tava, cara? A K. ficou possessa. E você perdeu um scatchdraw bacana ontem. Ah, emprestei tua revista pro Luis, ele disse que devolve depois.
— Era só pra falar que eu estou legal. Porra, emprestou pro Luis, cara? Eu nunca mais vou ver de novo.
— Que é isso, o Luis devolve, cara. Vai dormir, tu tá muito alteradinho. Amanhã a gente vai na tua casa, eu tenho algumas ideias do que vou pegar emprestado sem te pedir. Falou, criatura. Vou dormir pra ver se acordo.
— Irritante.
Era impressionante como era fácil mudar de foco. Por alguns instantes, tudo o que aconteceu parecia ter sido realmente um sonho. Ou outra vida.
(-- continua--)