Beyonders 9: Aonde levam as emoções
Samuel enfrenta memórias traumáticas ao reviver o dia do desaparecimento de seu pai, enquanto lida com suas recém-descobertas habilidades. Kate pode ajudá-lo a conseguir respostas.
"ACORDA."
Uma voz soou em sua cabeça, e os resquícios de um sonho importante se perderam quando Sam pulou da cama.
— Ai merda, atrasado de novo! Não posso furar com a Kate.
Sua irmã já havia saído. O bilhete na geladeira denunciava: “Não vou nem perguntar de ontem, mamãe chega depois do almoço.” Pegou a mochila e deixou qualquer pensamento de comer algo para lá enquanto corria em direção à porta.
Congelou em frente ao quadro. De repente, toda a lembrança da experiência anterior caiu como um tombo em sua mente, agora mais lúcida. O sono sumiu.
— Pera um pouco. Será que...
“Você entendeu, Sam? Tem algo com você que possa servir de suporte físico?”
As palavras do chinês ecoaram em sua mente. Abriu a mochila e viu o livro que precisava devolver à biblioteca em suas mãos. Atrás do livro estava o título e a sessão a que pertencia.
— 238 A... — Sam se concentrou. — Corredor A, n. 238...
De repente, uma lembrança ecoou na memória de Sam. Sua ansiedade fez a carótida pulsar no pescoço, ele sentiu o ar faltar. A lembrança de seu pai, no dia em que o viu pela última vez, quando sua irmã nasceu.
Samuel sentiu-se sendo puxado através do tempo e espaço, assim como na experiência do quadro, mas agora estava em Nova York, no dia em que seu pai desapareceu. Era 11 de setembro, mas ele não sabia onde estava. Havia fumaça por toda parte, o cheiro de queimado e o caos tomavam conta do ambiente. O barulho ensurdecedor e a visão de um prédio desmoronando o deixaram em pânico. Correu na direção oposta à da multidão, em desespero.
De repente, avistou ao longe seu pai. O coração de Sam disparou. Tentou gritar, mas sua voz não saía. Seu pai olhou para ele e, em um instante de telepatia, Sam ouviu claramente:
— SAM, VOLTE, AGORA!
Foi como um baque surdo. A voz de seu pai era autoritária e urgente, ecoando em sua mente. A pressão foi demais, e ele apagou, gritando:
— Pai, não!!
Samuel acordou novamente na cama, respirando com dificuldade. Ele abriu os olhos e sentiu a realidade se sobrepondo ao que parecia um sonho. Havia fuligem em sua roupa e no corpo, como se tivesse realmente estado no meio da fumaça e do caos. O coração ainda batia acelerado, e uma sensação de pânico e desorientação o dominava.
— O que? Mas eu achei que já tinha acordado. Mais um sonho? Eu não…droga, pai... Mas por quê?
Ele lacrimejava, mas como sempre, jogou para debaixo do tapete emocional tudo que dizia respeito ao desaparecimento do pai. Levantou, lavou o rosto, pegou a mochila e deixou qualquer pensamento de comer. Congelou novamente em frente ao quadro, a lembrança de seu pai ainda fresca na mente.
— Déjà vu. — Ele murmurou.
O gato olhou para ele. Sam olhou em volta, ainda tentando processar o que havia acontecido.
— Kate está esperando, não posso furar de novo. — Olhou o celular. — Onde eu estava? Concentração, vamos lá, vamos ver se tudo isso é real mesmo ou se estou batendo pino.
Resolveu testar de vez seus poderes. Concentrou-se mais. Focou no livro, imagens do momento em que pegou o livro na prateleira da biblioteca vieram à sua mente.
— NÃO! — Cortou o pensamento. — Tempo e espaço, Sam. Se lembrar do dia que pegou, pode voltar no tempo — ele se deu conta. — O que estou fazendo? Calma. Suporte físico, referencial, concentração.
Fechou os olhos, visualizou a biblioteca, o corredor, sem pensar em nenhum momento específico. Concentrou-se novamente na etiqueta. Som alto, britadeira, leveza, FLASH. Ausência de sentidos, espaço, de repente, todos os sentidos de uma vez. Livros caindo no chão.
Sam jazia derrubado em um corredor com alguns livros em cima dele. Olhou em volta, mais acostumado à sensação.
— Ninguém em volta. O que você estava pensando? E se alguém te visse? — Falou consigo mesmo.
A biblioteca estava estranhamente vazia para uma quarta-feira, véspera de entrega de trabalhos e provas. As mesas com wireless e notebooks estavam desertas. Ele se dirigiu a uma delas e sentou. Olhou o horário.
— Samuel, você está adiantado. — Pensou, sorrindo.
A tela de LED do MacBook na sua frente oscilava nervosamente entre o Instagram e o WhatsApp. As várias abas abertas no browser sem nenhum conteúdo específico sobre o trabalho que ele precisava entregar em pouco tempo evidenciavam seu nível de dispersão.
Mas ele simplesmente não conseguia se concentrar. Estava ansioso demais. Ansiedade e dispersão eram velhos companheiros. Seu déficit de atenção, que parecia controlado, agora vinha forte e seus pensamentos pulavam sem parar.
“Concentre-se, Samuel, ou sabe-se lá onde você vai parar.” Ele usaria essa frase como mantra dali em diante, decidiu. Agora, sua falta de atenção voltava a ser um inimigo palpável, como fora muitas vezes antes.
O que havia acontecido no quadro parecia a lembrança de um sonho cinco minutos depois de acordar pela manhã. Exceto, é claro, pelas marcas que ainda carregava no corpo, a imagem do desenho do Mandarim, o fato de que ele havia se teletransportado para a biblioteca alguns minutos antes e, claro, seu pai.
Ele ainda queria acreditar que foi tudo um sonho. Mas a sensação de déjà vu era esmagadora. Ele percebeu que algo estava errado. Sam olhou para as suas mãos e viu vestígios de fuligem. A realidade o golpeou como um soco: ele realmente esteve lá. Seu pai. Nova York. O 11 de setembro.
As memórias e o trauma reprimido emergiram com força total. A ansiedade cresceu em seu peito, tornando-se uma onda avassaladora. Lembrou do conselho do chinês, mas a mente não se aquietava. A imagem de seu pai, desaparecido há tanto tempo, estava gravada em sua mente. Ele se lembrou da última vez que o viu, quando sua irmã nasceu, e de todas as vezes que sua mãe tentou encontrá-lo. A ansiedade começou a apertar novamente, e ele teve que se concentrar para respirar.
Lembrou do grito desesperado que deu antes de apagar. Mas era impossível, como? O pai estava com eles naquela manhã, na maternidade, quando Tábata nasceu.
— Pai... — sussurrou, sentindo as lágrimas surgirem.
Samuel respirou fundo e se concentrou. Tinha que falar com Kate, mas antes precisava saber o que havia acontecido. Algo dentro dele gritava que seu pai estava em perigo, e ele tinha que voltar lá, precisava entender. Mas não tinha nenhum referencial daquele dia, daquela época.
— Samuel, você está em uma biblioteca. — A ideia o fez levantar de repente.
Lembrou dos materiais sobre o 11 de setembro que já havia visto na biblioteca. Talvez encontrasse um referencial forte o suficiente para um novo salto. Levantou-se, determinado, e foi em direção às prateleiras de história. Precisava encontrar algo que pudesse usar como âncora. O coração ainda batia forte, mas ele sentia uma nova onda de impulsividade crescer. Começou a procurar pelos materiais sobre o 11 de setembro. Encontrou livros, jornais e revistas que detalhavam o evento. Se concentrou, tentando visualizar a cena novamente.
— Concentração, Sam. Você consegue. — Pegou um jornal com a capa do atentado e fixou o olhar.
Fechou os olhos, visualizou o momento, o caos, a fumaça, e a imagem de seu pai. Sentiu a mesma sensação de leveza, o som alto, a britadeira, o flash. De repente, todos os sentidos de uma vez. Livros caindo no chão. Estava novamente na biblioteca.
— DROGA! Como assim?!
Olhou em volta, ninguém naquele corredor. Entendeu o risco que estava correndo, de alguém o ver, ou pior: de tudo ser um surto e ele estar se jogando no chão achando que vai viajar no tempo.
“Fatos. Isso, sempre se ater aos fatos, Samuel. Não estou batendo pino.” Livros caídos no chão, as marcas e imagem do triângulo, tudo era real, dentro e fora de seus pensamentos, constatou de novo.
Voltou a sentar na frente do notebook com mil abas abertas, buscando se acalmar. Alguém chegou calmamente, vindo de trás.
— Me chame de careta, mas eu não conseguiria me concentrar NUNCA com tanta janela aberta na tela. — A voz calma era inconfundível. — Se eu fosse você, experimentaria abrir só o editor de texto. Você precisa se ajudar, rapaz.
Ao avistar Kate, com um livro de semiótica nas mãos, à sua frente, sentiu um alívio momentâneo. Sua mente aquietou, e ele conseguiu focar naquele momento presente. Ao mesmo tempo, a lembrança do episódio do quadro e do quanto ela estava chateada com ele o pegou de jeito.
Ele já tinha se acostumado com aquele gênio meio mandão, mas claramente interessado de Kate. E ela parecia estar mais calma.
— Primeiramente, parabéns, nunca te vi chegar adiantado em um compromisso.
Sam deu um leve sorriso.
— Segundamente, a gente não ia fazer esse trabalho juntos? Ou vai querer ser zoado de novo na sala por abstrair completamente que está em uma faculdade e isso implica em entregar trabalhos? — Por mais lindos que fossem aqueles olhos, esse tom de mandona com a pressão de que “você está fazendo algo errado” o irritava profundamente.
— Kate, desculpa… ontem, aquilo que eu ia te contar... bem, eu não sei como falar sem soar loucura. Deixa eu processar... É muita coisa na cabeça.
— Muita coisa na cabeça? Muita coisa na cabeça?? — Ela respirou fundo. — Bom, já fiquei puta da cara com você por várias horas, não vou esquentar mais. Eu já fiz minha parte do trabalho. Só vou organizar as coisas. Peraí, deixa eu sentar e te passar o que você precisa fazer por email.
Ela saiu devagar, colocando delicadamente seu material duas mesas ao lado. Ele havia entrado novamente naquele estado deprimente em que a mente virava um pastel de ar e não conseguia falar nada até constatar, incomodado, a distância que ela deixara entre eles. Imediatamente, sua insegurança apitou, angustiante. “Pronto imbecil, conseguiu de novo” pensou.
Foi quando o barulho irritante do WhatsApp apitou em sua tela, lembrando-o, mais uma vez, de configurar o aplicativo para não emitir sons irritantes. Virou-se pronto para desligar quando leu no pequeno espaço de LED:
— Quem sabe eu escrevendo por aqui você presta um pouco de atenção no que eu falo, cabeção. Clica aí e vê se prepara alguma coisa pra não ser mais motivo de piada. E completou: — Me preocupo contigo. E precisamos urgente conversar sobre ontem…
Na tela, seguiam dois links com conteúdo para o trabalho que ele insistia em adiar. No rosto, um sorriso bobo. Olhou de lado. Ela não olhava para ele, mas estava com uma cara marota. “Levanto? Vou lá? O que eu faço?” pensou desesperado. Mas ela havia voltado a ficar séria e concentrada no trabalho. Aquietou-se e respondeu online mesmo:
— :D valeu.
E em seguida:
— Não sei o que seria de mim e minha formação acadêmica sem você :)
Agora parecia uma resposta legal. Nem muito boba, nem muito séria, e mostrando claramente como ele se importava com a opinião dela. Olhou para o lado. Ela sorriu e piscou. Olhou para a tela e viu a resposta dela: — ;)
Abriu o documento do link, e imediatamente congelou. Levantou de um pulo, o que chamou a atenção da garota, e andou rapidamente até ela. Toda encucação parecia a coisa mais ridícula agora.
— Kate, onde você encontrou esses links?
— A profe me enviou, da coleção particular dela de manuscritos. São manuscritos originais de Charles Sanders Peirce, lembra da aula?
Na tela do computador, acima do título “Categorias universais dos signos”, um triângulo equilátero com um círculo no topo iluminava os olhos vidrados de Samuel.
— Kate, eu preciso da sua ajuda. E preciso que você acredite em mim.
(--Continua--)
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