Como surgem as distopias?
Não é apenas a ignorância que leva alguém defender atrocidades, mas a imoralidade (ou amoralidade) que encontra eco naqueles que aceitam o inaceitável. É assim que surgem as sementes de uma distopia.
Estava sofrendo de ojeriza e angústia com a PL medieval do aborto essa semana, assim como todas as pessoas minimamente lúcidas e humanas do Brasil.
Não se enganem: não é a ausência de conhecimento que leva alguém a defender essa atrocidade, mas a imoralidade (ou amoralidade) que encontra eco e ressalta o ego primitivo daqueles que aceitam o inaceitável, independente de sua origem ou formação. E, assim, plantam-se sementes que podem fazer surgir as distopias.
Em meio a isso, lembrou-se, compartilhou-se e viralizou trechos de "O Conto da Aia", a ficção distópica maravilhosa de Margaret Atwood, escrita em 1985 - um ano que lembro bem, pois morreu Tancredo e iniciou-se nossa infante democracia.
A série é incrível, e a primeira temporada segue os eventos do livro. Para os mais desavisados, o futuro-presente imaginado por Atwood inclui a queda da democracia pela tomada do poder e criação de um Estado teocrático e totalitário governado por religiosos fundamentalistas.
Nesse cenário, a cultura foi jogada no lixo: não há mais jornais, revistas, livros ou filmes, nem universidades ou advogados. As mulheres perderam completamente seus direitos, sendo divididas em categorias específicas nessa nova ordem. "Aia" é a categoria da protagonista, mulheres pertencentes ao governo que existem unicamente para procriar.
Minha mente entrou em um turbilhão de relações, e entendi mais um aspecto do processo de escrita de ficção, seja científica ou não, que, junto com a ciência, nos dá pistas e mapas para possíveis realidades.
Veja que a ficção é um potencial do real.
Dele parte, extrapola, vislumbra possíveis realidades. E nos alerta sobre o melhor ou pior que podemos vir a ter que evitar ou lidar no futuro.
É inevitável fazer comparativos dos ataques que a democracia vem sofrendo ininterruptamente por extremistas, religiosos e fundamentalistas. É assustador como ganham adeptos e, mais assustador ainda, que foi possível prever um dos piores desfechos na ficção de Margaret. É como se, na escrita, destrinchássemos o multiverso, as múltiplas realidades que podem surgir a partir de decisões pessoais ou coletivas.
A ficção desde sempre vem imediatamente a partir de um autor que parece captar e extrapolar a partir da conjectura de sua época e dá o vislumbre. Desde "A Ilíada", até a moderna ficção, seja "Frankenstein" de Shelley, "Admirável Mundo Novo" de Huxley, "Duna" de Herbert, "Fundação" de Asimov ou "O Conto da Aia" de Atwood - e inúmeros outros, essas obras parecem captar para onde podemos ir e acabar.
Cabe a nós escolher, decidir e seguir. Até hoje, parece que, mesmo em meio a tantas atrocidades inimagináveis que o ser humano é capaz de cometer, conseguimos escolher a tempo de impedir o pior em termos globais (embora às custas de tantas vidas e fins de incontáveis povos).
Mesmo voltando atrás, ainda assim, o futuro parece caminhar para as distopias anunciadas e gritadas nas obras de ficção, científica ou não. Junto com a ciência, são as ficções - em livros, séries, filmes e contos - que anunciam para onde podemos ir.
Chegamos a mais um desses vórtices, pontos de decisão global, onde o absurdo pareceu acordar muita gente e a revolta e indignação estão conseguindo, por pouco, impedir o pior, ou pelo menos adiá-lo. Até que o ciclo se repita e a linha que nos separa de uma potencial distopia se torne mais e mais frágil.
Quantas ficções serão necessárias para que nossas escolhas façam essas histórias realmente serem destinadas tão somente ao campo da imaginação, jamais da realidade?